terça-feira, 28 de agosto de 2007

ELA CANTA, ( POBRE CEIFEIRA)

POR: Fernando Pessoa


Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave,

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente ‘stá pensando.

Derrama no meu coração a tua incerta voz onde ando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso!

Ó céu!
Ó campo!
Ó canção!
A ciência!

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro!

TornaiMinha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

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